“O mundo todo parece dobrado em cada alma” (1)
Aquarelas de Mariana Palma: formas misturadas, corpos híbridos, peles, ossos, galhos, ornamentos, bolhas, asas, pétalas. Reinos mesclados: meio vegetal, meio animal--um corpo estranho que se compõe ainda com detalhes de objetos inanimados. Uma natureza-morta feita de alteridades, pedaços frankesteins de coisas que se recusam a serem totalmente decifradas. Na ponta de ossinhos de frango brotam violetas. Asas de insetos se combinam a pétalas de flor na criação de um corpo nômade. Formas se contorcem, se espetam, escorrem. A ausência de contexto ressalta e confunde. Cada ser é suspenso. Cada imagem flutua sobre um branco de fundo perdido.
Telas de Mariana Palma: panos e dobras. Plissados, amontoados, ligados. Coloridos recobrindo cenas plenas de detalhes. São tecidos quase táteis. Um ou outro objeto estrangeiro—um pedaço de um móvel, um galho, um chão de tacos, uma parte de janela, paredes de ladrilhos—é quase sufocado, envolto e mal revelado, por sobre esse exuberante universo de panos.
Peles, tules e alguns rendados. Conjugações de espanto.
Uma sedução dos volumes, que parecem ganhar movimento e vida.
Molduras com véus e veludos. Camadas de cores e formas.
Não resta sequer um espaço em branco.
As tonalidades, as curvas e as texturas sangram pelas bordas da tela.
Essas pinturas fazem uma ode ao sinuoso. São superfícies sem compromisso com a retidão ou a resolução. As imagens são curvas, sobrepostas, dançantes.
Parecem ser vistas muito de perto, retratadas por olhos profundos, cientes de que a vida é feita tão somente da somatória dos detalhes.
Percebo-me incomodada e irremediavelmente seduzida por esse mundo colorido de dobras. Um universo misturado, que me faz pensar no conceito de dobra, utilizado pelo filósofo Gilles Deleuze (2).
Dobras, que no caso de Mariana Palma, podem ser estendidas para os plissados, os sobrepostos, os emplilhados ou jogados, um sobre o outro. Pode-se ainda pensar nas bainhas e nos nós de costura. Ou nos labirintos de panos, que nos conduzem a lugar algum.
A dobra implica a construção de um território de intensidades para a existência. Cada dobra ou curva, cada elipse ou pilha de panos conjuga espaços e intensifica superfícies.
É dito que a subjetividade se constrói nas flexões, nas encruzilhadas das relações de forças que produzem singularidades (3). As dobras juntam em si camadas distintas de tecidos, texturas e cores, formando um mundo próprio, singular. Um mundo histórias híbridas.
Esse tal mundo de dobras parece criar ainda uma nova geografia. Ora, dobras produzem justamente uma convergência de corpos, que dispostos de um modo muito próprio, geram a condição primeira na fabricação de uma nova realidade—um território singular.
Pois as camadas nas obras de Mariana Palma desembocam nos seres híbridos, boiando no branco das aquarelas, jogando o jogo do revelar e esconder por sobre as peles e os panos das pinturas. Todos são intertecidos, intertexturas, intertextos, que formam novos territórios e novos corpos.
As dobras e as sobreposições atribuem ao trabalho da artista uma condição barroca. A palavra barroco deriva de fato da denominação dada pelos comerciantes e joalheiros ibéricos do início da Era Moderna a qualquer pérola imperfeita, que seria então denominada barrueco (4).
Além desse termo, ligado a algo que está fora dos padrões, o barroco passou a designar, na arte a corrupção da perfeição greco-romana, o pecado da divergência em relação ao ideal clássico da Renascença (5), algo que desvirtuava o belo e o exato em favor de um virtuosismo exagerado e desmedido. Nas enciclopédias e dicionários de arte do século XVIII, barroco era definido como algo extravagante, excessivo, superlativo, abusivo.
O crítico de arte suíço Heinrich Wölfflin, no final do século XIX foi o primeiro a interessar-se mais profundamente sobre o universo do barroco (6). Em 1888, ao publicar o resultado de uma pesquisa de dois anos de estudos na Itália, ele utilizou-se do conceito de Friedrich Nietzsche de dualismo entre apolíneo e dionisíaco para referir-se ao renascimento e ao barroco.
Ele atribui à arte do renascimento a condição de uma busca pela beleza tranqüila, enquanto que ao barroco o poder de provocar um turbilhão avassalador de emoções no espectador. Wölfflin percebeu que o artista barroco não evoca a plenitude do ser, mas o devir, o acontecer; não a satisfação, mas a insatisfação e a instabilidade, gerado pelo dualismo entre luz e sombra, massa e matéria, carne e espiritualidade (7).
Essas características nos fornecem imagens preciosas no entendimento da obra de Mariana Palma. Se como diz Deleuze, o mundo todo está dobrado em cada alma, cada dobra na construção de imagens da artista contém muitos mundos e muitas almas, e anseiam por novos devires.
Em suas pinturas, tudo se dobra e se desdobra, se revela e ao mesmo tempo, se esconde.
É como numa capela barroca, sem portas nem janelas, onde tudo é interioridade. E, simultaneamente, num emaranhado de invólucros, cuja densidade está toda contida na própria superfície.
Nesse mundo de desdobramentos e de cruzamentos, conexões múltiplas se estabelecem ad infinitum. E tudo isso acontece sob nosso nariz e nossos olhos, hipnotizados pela beleza das cores, seduzidos pela destreza da pintura, fascinados pela riqueza das texturas. Cegos de tanto ver.
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Notas:
1-Gilles Delleuze. A Dobra: Leibniz e o Barroco. SP: Papirus editorial, 1991.
2-idem
3-idem
4-Juan Ramon Triadó, Saber ver o Barroco. SP: Martins Fontes, 1991.
5-Ernst H. Gombrich. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990
6- WÖLFFLIN, Heinrich. (1888). Renascença e barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989.
7-idem
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*PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York e livre-
docente em Teoria e crítica de Arte pela ECA USP. É docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de S. Paulo.