Há países sem lugar e histórias sem cronologia; cidades, planetas, continentes, universos, cujos vestígios seria impossível rastrear em qualquer mapa ou qualquer céu, muito simplesmente porque não pertencem a espaço algum. Sem dúvida, essas cidades, esses continentes, esses planetas nasceram, como se costuma dizer, na cabeça dos homens, ou, na verdade, no interstício de suas palavras, na espessura de suas narrativas, ou ainda, no lugar sem lugar de seus sonhos, no vazio de seus corações.
Michel Foucault
Em uma de suas crônicas mais singulares[1], o português Francisco Manuel de Melo (1608-1666) registra o episódio em que, navegando a serviço da coroa espanhola, esteve perto de afundar no Golfo da Biscaia. Ele conta que, ao se dar conta do naufrágio iminente, dom Manuel de Meneses, comandante do galeão, recolheu-se para vestir os melhores trajes. Surpreendentemente, a tripulação fez o mesmo. Quando todos estavam prontos, o general pegou um papel, recitou um soneto do poeta espanhol Lope de Vega, comentou o texto, chegando a ensinar aos presentes o significado de pleonasmo, acirologia e as diferenças entre as duas figuras retóricas.
O episódio, citado pelo filosofo espanhol José Ortega y Gasset em ensaio sobre Velasques[2], exemplifica com rara clareza o conceito de teatralidade como um dos grandes elementos definidores do barroco - época que na história da arte ocidental corresponde grosso modo ao século XVII. Ainda demonstra como a dimensão teatral não se limitou a definir a arte do período, mas invadiu a vida cotidiana do cidadão da época. Vestir os trajes de corte para morrer afogado em vez de tentar se salvar não é gesto improvisado, mas fruto de uma ética que coloca a transcendência acima da própria sobrevivência.
Além do conceito de vida como mise en cene, há outros elementos que traçam uma possível definição de arte barroca. Porém, mais que uma ementa de características, o que desponta é uma sensibilidade para com o universo que tende a ocorrer ciclicamente na historia das artes. Suas reverberações atravessam os séculos para chegar até os dias de hoje[3].
A arte de Mariana Palma parte daí. Nas grandes telas de cores saturadas, o grandeur, a construção da narrativa, do drama, do movimento, a pujança emocional, a vitalidade, o uso de texturas contrastantes e materiais luxuosos apontam para o parentesco com o barroco, evocando reflexões seiscentistas, e ainda atuais, acerca da sensualidade, da efemeridade da beleza, do mundo como palco. Elementos teatrais são onipresentes nas composições. Panejamentos, drapeados, cortinas teatrais, recortes de figurinos aludem à vocação para encenação.
Outros elementos sugerem afinidades genéticas mais amplas. O uso de cores puras remete aos pintores flamengos, mestres na pintura a óleo e na retratação detalhada e realista do mundo circunstante. O domínio das leis da perspectiva e seus sutis efeitos ilusionísticos sugerem o profundo conhecimento da lição renascentista - ao ponto de subvertê-la.
Para além da reconstrução de suas origens, a observação destas figuras complexas, frutos de referências e elementos justapostos, gera uma sensação de incômodo, algum tipo de incompreensão. Os panos sempre presentes são emaranhados, fechados: ao invés de re-velar, parecem velar. O que se esconde atrás das cortinas de teatro? O que encobertam os drapeados? Quais tabus carregam as construções verticais, totêmicas? O que está sendo dito - sem dizer?
O conhecimento dos pressupostos da tradição pictórica não esgota a compreensão da imagem, mas funciona como ponto de partida para abordar as inquietações da artista. Palma usa o conhecimento para desenhar mundos como que suspensos, fragmentos de espaços construídos por sobreposições que normalmente seriam incompatíveis. Nas telas de grandes dimensões, azulejos convivem com folhagens, ralos com anêmonas, cortinas de teatro com flores, tecidos estampados, drapeados e desfiados. Nas aquarelas e fotografias, natural e artificial geram híbridos improváveis. Em ambos os casos, o resultado são composições inesperadamente harmônicas, e ao mesmo tempo misteriosas que, ao causar certo estranhamento, convidam o espectador à contemplação.
Apesar da abundância de elementos, o discurso não é escancarado. A encenação é privada, quem tem acesso à narrativa como um todo é apenas a artista. O espectador fica do lado de fora, atrás de cortinas fechadas e panos enrolados. O incômodo vem da sensação de algo escondido, ainda vendado, sugerindo um enigma. Excluído da totalidade da encenação, resta ao público observar o que é mostrado e ficar imaginando o resto.
Na produção mais recente, o novelo parece se desembrulhar. Os elementos se espalham pela tela, conquistando o espaço. As composições se abrem, ganhando momentos de silêncio, pausas narrativas que valorizam os elementos. O totem se desfaz e vai revelando seus tabus. A cortina se abre e nos revela indícios. Os drapeados assumem formas antropomorfas, sugerindo a existência de mãos, braços, possibilidades de danças apenas acenadas, jamais descritas. Mais espaçados, os elementos parecem ter passado por um processo de destilação.
Segundo a psicanalista Patricia Gutman, o nascimento de um bebê provoca a abertura de uma porta. E dela tudo sai: fluídos, claro, mas também medos, pesadelos, amor. Depois do parto, a mãe recém-nascida navega junto à cria em um metafórico tanque de água densa, impregnada de todas as experiências vividas na infância. Sem que a mãe tenha recordação consciente delas, vão aflorando vivências amorosas e também, por vezes, violentas. Visto por esta lente, o parto seria uma oportunidade de deixar despontar o verdadeiro eu. Ganhar consciência do desenho original, afastando-se das máscaras construídas como refúgio em personagens confortantes.
A nova produção de Mariana Palma sugere um convite a compartilhar experiências de abertura, jóia e também angustia, que podemos supor ligadas às duas maternidades recentemente vividas pela artista. A pista é sugerida pelas fotografias de fundo branco, novidade da produção que, enquanto retoma o tema dos híbridos construídos pela justaposição de elementos naturais e artificiais, introduz também um ingrediente revelador ligado ao universo do puerpério. As imagens emergem do leite, um fundo ativo, que revela e esconde, um candor vivo que, segundo a artista, evoca certo incômodo e claustrofobia.
Observar os grandes dípticos e trípticos da artista é abrir um livro sobre navegações a mundos distantes, mergulhar em misteriosas águas femininas, tentar sondar suas profundezas. Neste passeio pelo desafio que é a vida, adentramos jardins improváveis, no eco de mares marmorizados, no pressentimento de um soco abafado pelas águas submarinas. Reemergimos atordoados pela sensação de ter viajado para um outro espaço. Um microcosmo aparentemente transbordante mas em que, no fundo, nada é por acaso. As composições são forjadas sapientemente pela artista, que parece ter ganho maior consciência sobre seu trabalho. Enquanto evocam mundos da imaginação, falam por alegorias do aqui e do agora.
Inevitável lembrar das páginas de Michel Foucault, onde o filosofo francês define duas categorias de espaços que diferem do habitual. Enquanto as utopias designam lugares que não existem, as heterotopias definem literalmente “espaços outros”: locais tangíveis, mas que operam de maneira distinta do usual. Regidos por dinâmicas especificas, são conectados a todos os outros espaços, mas de forma a suspender, neutralizar ou inverter o conjunto de relações que designam, refletem ou espelham.
Exemplos de heterotopos são os cemitérios, as casas de tolerância, as prisões, os Club Med. O teatro, por seu poder de justapor em um único lugar (bidimensional) espaços (tridimensionais) normalmente incompatíveis uns aos outros. O jardim, mais antigo exemplo de “lugar outro”. O jardim dos persas era espaço sagrado; de forma retangular, a cada área correspondia uma das quatro partes do mundo. No meio, havia um espaço ainda mais sagrado, com o jato d’água. Toda a vegetação distribuia-se nesse microcosmo. Em outras palavras: era a menor parcela do mundo e também a totalidade do mundo.
Fragmentos de espaço ligados a todo o resto, os heterotopos ainda supõem um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, isola-os e os torna penetráveis apenas a quem tiver alguma permissão. Criam espaços de ilusão que denunciam como ainda mais ilusório qualquer espaço “real” (como no caso das casas de tolerância). Ou ainda, criam outros espaços “reais”, tão perfeitos, meticulosos, organizados quanto o nosso é desorganizado, maldisposto e confuso (como no caso das colônias jesuítas da América do Sul, em sua origem extremamente organizadas).
O exemplo mais eloquente de heterotopia foucaultiana, porém, remete-nos às aventuras de don Manuel de Meneses. O barco é fragmento de espaço flutuante, lugar sem lugar, fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar. Navega de porto em porto, de bordel em bordel, chega até as colônias para encontrar o que há de mais precioso em seus jardins. Da época dos descobrimentos a hoje, foi para nossa civilização a maior reserva da imaginação. O que seria dos sonhos, da criatividade sem os barcos? O que seria da vida sem a reserva de sonhos e liberdade da arte? Segundo Foucault, nada de muito desejável. “Nas civilizações sem barcos, os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a polícia os corsários”.
Silvia Albertini
[1] O episódio, ocorrido em 1627, foi descrito na crônica “Epanáfora Trágica”, publicada em 1660.
[2] ORTEGA Y GASSET, José. Velázquez. 1 ed. brasileira Martins Fontes, 2016.
O episodio é retomado em OROZCO DIAS, Emilio. El Teatro y la teatralidad del Barroco. Editorial Planeta, 1969
A questão da recorrência do barroco em diferentes épocas históricas, longe de ser banal, já incomodou teóricos notórios do período. Heinrich Wölfflin, Eugenio d'Ors, José Antonio Maravall e o sempre citado Gilles Deleuze.[3]