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tradição e inovação na arena da pintura

por Paulo Reis

No Fragmentos das Prelecções sobre Estética (1792-93) Schiller[1] (1759-1805) argumenta que não há nenhuma regra objectiva sobre o gosto e que ele é apenas um critério empírico do belo, subjugado ao espírito do tempo. Quando Schiller escreveu este texto sobre kallias ou sobre a beleza, o Romantismo viria a se impor como modelo estético, aliciando o gosto para pintura repletas de imagens de interiores e personagens vestidas por roupas adamascadas, repletos de bordados e arabescos, numa volumetria exagerada dos padrões orientais, exóticos e decorativos para ilustrar temas heróicos ou mitológicos. O triunfo do Romantismo - filho dilecto do Rococó – recupera o real valor da pintura de ourivesaria, unindo o esmero ilusionista do barroco ao requinte decorativo rococó, gerando imagens que enchem aos olhos de prazer e luxúria. Os artistas românticos apropriaram-se destes moldes decorativos - de forte acento classicista greco-romano - para configurar uma pintura de estilo heróico (para os franceses) e idílico (para os alemães).

Para o artista hoje, a história da pintura ocidental apresenta-se como um patchwork dos diversos estilos que se foram acumulando no passar dos tempos. O artista contemporânea sente-se como a Vênus dos trapos (Veneri degli stracci) de Michelangelo Pistoleto, cujo enigma serve-nos como ilustração diante de toda enciclopédia visual disponibilizada ao artista. Na obra de Pistoleto, o emaranhado de cores, oriundas do enorme volume de roupas acumuladas, cria uma dislexia visual na escultura da Vénus que esta parece impossível de escolher uma peça. Entretanto, o acto provocativo e irónico do artista italiano é bastante elucidativo sobre a diferença entre tradição e ruptura, servindo ainda de paradigma para que os artistas não se sintam intimidados com a tradição e a enfrentarem com novas roupagens.

A pintura de Mariana Palma é este olhar da Vénus diante dos tecidos, seduzida pela beleza da cores e da luz que atravessa aquele corpo esquartejado. A artista realiza uma obra que é sobretudo um comentário de toda a imagerie que se constituiu como passado da arte. Num puzzle de referências, mescla a pintura antiga holandesa e flamenga ao Romantismo, inclui padrões industriais dos tecidos ingleses e da cultura popular brasileira para criar o que chama de paisagens. “O meu trabalho é caracterizado por paisagens inventadas do acúmulo de tecidos, lustres ornamentados, elementos diversos da natureza e fragmentos de corpos - referências que resultam em imagens de um corpo híbrido e que fazem deslumbrar pelo excesso… São paisagens ou figuras com um sentido de lugar isolado e suspenso no tempo. Penso que a idéia de “artifício” que está colocada em minha obra levanta um questionamento sobre aquilo que vemos. Minha intenção é levar o observador a desconfiar da natureza desta pele ou indagar sobre a origem da paisagem que lhe são apresentados, levando-o a um mergulho em um universo vertiginoso de referências e impossibilidades” [2]

A exuberância cromática das pinturas de Mariana Palma aproxima-a das mesmas questões que mobilizam artistas como Beatriz Milhazes e Adriana Varejão. Numa abordagem de recriação da tradição da pintura internacional e brasileira, Beatriz Milhazes mistura a tradição dos bordados portugueses à tecelaria indígena, a cor de Tarsila do Amaral à arquitectura barroca de Aleijadinho e as pinturas de Mestre Athayde; Já Adriana Varejão interessa-se pelos processos de colonização através de imagética religiosa dos azulejos portugueses e as pinturas de costumes, a tatuagem e as marcas das religiões afro-brasileiras; Mariana Palma, tal como as artistas citadas, é uma exímia colorista que também actua entre alta e baixa cultura, se apropriando do curioso sistema dos padrões dos tecidos locais numa esfuziante cenografia. O interesse da artista é reproduzir texturas, cores, transparências, retomando o luxo e a exuberância dos tecidos que enchem os mercados no interior do Brasil. Aliando a uma técnica de ourivesaria dos pintores românticos franceses, Mariana Palma une o chitão – tecido característico do sertão brasileiro - ao veludo real de Ingres.

Mas é da tradição da pintura religiosa que nasce muitas das pinturas de Mariana Palma. A sua fascinação pela pintura holandesa e flamenga dos séculos XIV e XV é notória. Sua inspiração nasce dos panejamentos dos personagens e da arquitectura de interiores de muitos quadros religiosos do norte da Europa, de Jan van Eyck (O Casamento dos Arnolfini (1435) e A Virgem e Criança e o Cardeal van der Paele (1436), a Rogier van der Weyden (Deposição da cruz (1438), de Hans Memling (O Casamento Místico de Santa Catarina, do Tríptico de São João Bastista e São João Evangelista (1479) e Cinco anjos tocando instrumentos musicais (c.1487-90) a Gerard David (A Virgem e a Criança com Santos e donor (c.1510). Mas também da pintura heróica francesa do período napoleónico, de Dominque Ingres (A Grande Odalisca (1814), A Banhista de Valpinçon (1808) e Napoleão entronizado (1806), de Jacques Louis David (A Coroação de Napoleão (1805) e Marte desarmado por Vênus e as Três Graças (1824) e Eugène Delacroix (A Morte de Sardanapalus (1827) e A Mulher no leito branco (1824). Some-se ainda algumas pinturas de Cèzanne, Gauguin, Matisse, van Gogh e a brasiliera Tarsila do Amaral e teremos o tromp-l´oeil de Mariana Palma.

Mas seu truque é confundir o espectador, pois as referências estão emaranhadas no modelo que ela escolhe como padrões, algumas reinventadas, outras recombinadas a partir de modelos antagónicos. “Espelho da sua imaginação, as telas e desenhos que ela “inventa” são traiçoeiramente provocativos. Desmascaramos o aparente sossego que atravessa seu trabalho ao percebermos os astutos artifícios com os que a artista nos envolve no seu próprio universo. Percebemos como o que aparenta ser uma coisa, logo se torna outra diferente, desconhecida, improvável. Panos viram peles, membros inexistentes fundem-se para criar seres aparentemente familiares enquanto sincréticos estilos arquitectónicos propõem gravidades simuladas. Dentro das encruzilhadas para os sentidos que povoam a sua galáxia de signos, nos cativa, paradoxalmente, o fato do ser humano se fazer presente através da sua total ausência. É o ser humano que dispõe os tecidos nos espaços criados pela artista, o mesmo ser humano que faz os enxertos de seres/objectos que a nossa memória mimetiza como objectos/seres reais. É a partir deste tipo de associação e vestígio que percebemos de forma indirecta a presença fundamental do ser humano na sua obra. Mariana cria sem classificar suas invenções. A ausência de título nos seus trabalhos nos revela a sua escolha pela liberdade criativa no lugar da idéia de inventariar seu mundo. Mais uma vez a arte nos demonstra como os sentidos são insuficientes para decifrar o ambiente ao nosso redor”. [3]

Mariana Palma é uma observadora do mundo, pois anda pelo mundo prestando atenção, como a personagem da canção de Adriana Calcanhotto, colectando padrões, formas, cores, etc…, combinando no mesmo espaço uma asa de um anjo, uma pele animal, um veludo, penas de pavão, rabo de animais, ossos, flores, arquitectura oriental, a chita do sertão brasileira, enfim tudo que lhe desperta e chama a atenção, como um classificadora das formas existentes. No começo suas pinturas eram “enigmáticas que mesclavam paisagens, fragmentos da figura humana e camadas e camadas de tecidos de todos os tipos. As telas eram algo assim como uma combinação da padronagem matisseana com a tradição do grotesco e do informe… Os trabalhos me pareceram uma depuração da linguagem que Mariana vinha desenvolvendo na pintura: ali estavam os híbridos de pele, tecido e figuras orgânicas, desta vez animais (ossos, pêlos, chifres, teias), tudo alinhavado por um cuidadoso requinte decorativo, na melhor acepção do termo... No desenho, o discurso da artista tornou-se mais vigoroso e também mais cristalino... O que havia nas telas de anos atrás em potência, depois da maturação da poética no processo de criação de vastas séries de aquarelas, transformou-se em uma das linguagens pictóricas mais poderosas da arte brasileira actual…As superfícies sedutoras que retratam um amálgama de casacos de pele, padrões têxteis, ornamentos e ruídos de humanidade (marcas, vincos, vestígios de presença, evidências da ausência) fascinam ao mesmo tempo em que repelem. Não há mais espaço para fragmentos de paisagem onde o olhar possa descansar: a pintura é asfixiante, tomada inteiramente pelas texturas representadas com virtuosismo, como se a artista tivesse feito um zoom nas telas iniciais e escolhido apenas o amontoado informe de roupas e corpos... Nos desenhos, vemos essa lógica invertida. Em vez de a superfície do papel estar preenchida por completo, há mais brancos e vazios do que formas desenhadas. No lugar da asfixia, há morbidez: somos atraídos para ver de perto a imagem delicada e, uma vez ali, cara a cara com o avesso de todas as coisas, fisgados pelo “real” (aquele entendido como “retorno do reprimido”, segundo Lacan e também Hal Foster, na esteira dele), vislumbramos uma fissura de vida) … [4]

Lembrando que para Hal Foster o retorno do real converge com o retorno do referencial. Talvez seja por isso que muito artistas contemporâneos estão imbuídos deste olhar do passado enquanto uma tradição a ser reconfigurada. No actual zeitgeist, coloca em xeque-mate o gosto holístico da sociedade actual quando pergunta se é ainda possível manter uma actividade artística sem uma função crítica da tradição? Julgamento, juízo e gosto entram em discussão no embate deste fenómeno chamado de pós-modernidade, projecto onde é possível fazer releituras, citações e comentários da tradição. A arte de Mariana Palma recua até o passado para retirar dele a maestria do realismo dos mestres pintores, porém não fica apenas na recriação dos seus moldes, busca sobretudo contribuir na construção de uma nova visualidade através da criação individual. Mariana Palma une tradição e inovação na arena de sua pintura.

 

 

 

 

Paulo Reis,

Rio de Janeiro, Agosto de 2008

 

 

 

[1] Schiller, Friedrich, Fragmentos das Preleções Estéticas; recolhidos por Christian Friedrich Michaelis; tradução: Ricardo Barbosa- BH: UFMG, 2004.

 

[2] Depoimento da artista.  

 

[3] Velásquez, Fernando, in Um ponto e outro, edição nº 2; - Florianópolis: Museu Victor Meireles, 2006. 

 

[4]  Monachesi, Juliana; in Um ponto e outro, edição nº 2; - Florianópolis: Museu Victor Meireles, 2006. 

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